As muitas vozes da solidão: de inimiga a amiga




Meu irmão! Queres caminhar para a solidão? Queres procurar o caminho que conduz a ti mesmo? Detém-te um pouco e escuta-me. ‘Aquele que procura, facilmente se perde a si mesmo. Todo partir para a solidão é culpa – assim fala o rebanho. E tu fizeste parte do rebanho durante muito tempo. A voz do rebanho continuará ressoando dentro de ti. Queres, porém, percorrer o caminho de tua tribulação, que é o caminho para ti mesmo? Mostra-me, então, teu direito e tua força para fazê-lo’. Nietzsche, Assim falou Zaratustra (Do caminho do criador)

Esta bela passagem da obra prima de Nietzsche traz em tona uma forte crítica ao projeto de vida que foi construído pela modernidade, ao mesmo tempo que sustenta a idéia do além-do-homem, aquele homem que para Nit consegue se libertar do peso dos valores de sua época – transvaloração dos valores.
Nietzsche começa surpreendendo dizendo que a solidão é o caminho que nos conduz para nós mesmos. O sentido da solidão que Nietzsche nos fala deve ser compreendido dentro de uma perspectiva existencialista, enquanto uma situação que permite ao homem um (re)inventar-se, superando obstáculos e condições difíceis que evidentemente fazem parte do devir, em contraposição com a ingênua idéia de que a vida pode ser isenta de sofrimento.
A solidão que não nos serve, de tal modo que Nietzsche chama nossa atenção para nos desprender do peso moral que ela sustenta (Todo partir para a solidão é culpa – assim fala o rebanho), é aquela enquanto estado abominado pela sociedade, carregada de sentido patológico. Esse sentido do termo, certamente sustentado por uma base moral cristã, é nos imposto pelo rebanho, pela cultura de massa que nos faz acreditar que o homem “sadio” é aquele que vive rodeado de vozes.
Para a nossa cultura, o homem sozinho, em contato consigo mesmo, é “mente vazia para produção diabólica”, como dito pelo cristianismo; ou pode ser um potencial “perigoso” pois é terreno fértil para duvidar das “verdades” que os mecanismos de poder engendram: o saber, a economia, a cultura, o Estado, etc.
Nossa educação é toda baseada em sutis elementos que silenciam a singularidade. Somos educados para o gregário, para viver como iguais, gostar e fazer o que uma ampla maioria faz, reproduzir o já pensado, etc.; e mais do que isso, aquele que se destaca por alguma singularidade pode ser cogitado a sustentar uma condição de desviante, rebelde, anti-social, individualista (em sentido liberal) entre outros termos já bem compreendidos no itinerário da exclusão.
A felicidade mutilada que o homem moderno inventou, traz como possibilidade para o seu acesso, o total afastamento do homem consigo mesmo. O fracasso está associado àquele que não consegue se jogar nos braços eufóricos das multidões compactuando do entretenimento fugaz e estéril de sentido que é comum para todos.
Este entretenimento como possível fonte de felicidade – não antes como uma forma de fuga desenfreada da solidão que é selada como a imagem do homem fracassado -, não cria e muito menos dá sentido à vida, não tem poder transformador e afasta o homem cada vez mais de si mesmo. O entretenimento da civilização moderna apenas condiciona homens e mulheres a seguirem ideologias, ordenha-os por supostos caminhos tidos como “corretos”.
A solidão que Nit nos fala é um contraposto a essa ideologia, e é elemento essencial do viver na medida em que possibilita ao homem o contato íntimo consigo mesmo. É auscultar o próprio corpo e modelar-se a si mesmo a partir das potencialidades da vida. Nessa relação livre de todo peso valorativo, está posto o reconhecimento da vida enquanto tragédia, e é justamente no sofrimento da tragédia que pode erigir a alegria e a afirmação incondicional do viver, tal como faziam os gregos pré-socráticos.
Nietzsche muda de órbita todo aquele sentido de “mal” que o homem moderno dá ao sofrimento e a dor. É reconhecendo nossa própria condição de horror que podemos contemplar o gozo e a alegria. Não se trata de aceitação nem conformismo, mas é por essa condição de relação “para além do Bem e do Mal” para com o sofrimento e a dor, que podemos nos empenhar em ações criativas do viver, dando sentido e significados a tragédia da vida. Em outras palavras, sem a dor e o sofrimento, onde haveria material em potencial para o homem fazer música alegre para o seu viver?
Há milênios a humanidade tem construído sua vida sob a ordem do gregário, este homem reconhece o que é bom para si a partir da legitimação do que é bom para a maioria. O próprio rebanho trata de punir aquele que se desgarra, colocando-o, como já dito, em alguma categoria patológica.
Nietzsche reconhece a difícil tarefa desse homem que já nasce em rebanho e é condicionado a ver o mundo dentro de uma perspectiva que é tida como “certa” (E tu fizeste parte do rebanho durante muito tempo. A voz do rebanho continuará ressoando dentro de ti.), de modo que “tornar-te quem tu és” não é algo possível dentro da perspectiva limitada de ver o mundo ordenado por essências.
Para ascender ao caminho que nos é próprio, relacionar-se com a vida e desfrutar daquilo que nos agrada sem precisar passar pela legitimação social do que é “bom”, o homem precisa superar o homem: transvaloração de todos os valores. Este é o caminho que Nietzsche ao longo de todo seu pensamento vai apontar.
Derrubando o peso dos valores o singular se liberta das correntes que lhes fora imputada pela força do hábito, pelo que foi convencionalmente chamado de “certo” ou “errado” em algum momento porque foi útil para um grupo de pessoas.
É necessário chamar atenção daqueles que, já bem condicionados pelo rebanho, certamente tomarão a proposta de Nietzsche como algo que transgride para a barbárie. Acostumados a separar o mundo em bom/mau, certo/errado, bem/mal, verdade/mentira entre outros pesos deformantes da vida, terão cristalizados uma ideologia que é cega para reconhecer que o além-do-homem não busca superioridade a partir da inferioridade da alteridade. Este homem é antes aquele que faz da sua própria vida uma obra de arte.
O caminho da solidão de Nietzsche não é o caminho do homem que se isola dos seus semelhantes, é o caminho daquele que sabe que não há nenhuma essência no mundo que regula o “certo” e o “errado”, e portanto vai ao encontro consigo mesmo, ouvir o seu corpo, seus órgãos e seu intelecto, e descobrir uma vontade de potência que lhe possibilite uma relação mais legítima com a vida.
Porém, qual o homem que está disposto a reservar um tempo para o deleite consigo mesmo? Qual aquele que tem coragem de vasculhar o seu horrendo interior onde coabitam “anjos” e “demônios”? É necessário ser forte para olhar para si próprio e se deparar com uma cacofonia de vozes, contraditórias e conflitivas, umas sobre as outras, querendo sobressair. És forte, tu, o suficiente, para isso? – Pergunta-nos Nietzsche.

* Imagem: Noite, Pietkra

http://www.eternoretorno.com/2008/10/27/as-muitas-vozes-da-solidao-de-inimiga-a-amiga/

Nenhum comentário:

Postar um comentário